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Chorar ou não chorar sobre o leite derramado das mudanças climáticas?

Algumas pessoas devem conhecer a expressão popular que diz não valer a pena chorar sobre o leite derramado. Mas será que essa abordagem é a mais adequada diante das questões climáticas tão urgentes?

Cada dia mais e mais evidências científicas apontam que o nosso estilo de vida (produção e consumo) tem efeito direto naquilo que conhecemos como as alterações climáticas. Inúmeras pessoas têm acesso a essas informações, algumas pessoas se desesperam outras simplesmente ignoram os dados e seguem com as suas vidas como se nada fosse.

Considerar a destruição passada e presente, assim como antecipar a destruição futura, causada pelo nosso estilo de vida mobiliza fortes emoções e afetos. Medo, ansiedade, ódio e tristeza são alguns desses sentimentos incómodos e uma forma ligeira de lidar com o problema é negá-lo.

Porém, apesar de algumas vezes usarmos a estratégia da repressão, negação ou abolição de temas dolorosos, também é verdade que normalmente a realidade nos (re-)lembra do que gostaríamos de esquecer. Seja por meio dos cientistas que aparecem no noticiário, dos estudantes e as suas greves climáticas, do secretário geral das Nações Unidas que pede urgência nas questões climáticas ou mesmo quando reconhecemos que as estações do ano andam confusas ou que as praias estão cheias de lixo.

Encontramo-nos, portanto, no paradoxal lugar de um conflito, podendo este ser mais ou menos consciente. Conflito que advém de um lado nosso que reconhece as informações da ciência e toda a sua realidade dolorosa e, por outro lado, o nosso desejo de jogar para longe tudo que causa dor, que nos recorda da nossa destrutividade e até mesmo da nossa frágil condição humana tão dependente do ambiente que estamos destruindo.

Conflito que gera diversas práticas discursivas mais ou menos próximas da realidade ambiental. Algumas pessoas diminuem a importância do que se passa, outros negam a sua gravidade e há aqueles que abolem completamente o que ocorre. Há também, entre aqueles que reconhecem a gravidade da questão, os que projetam vivências catastróficas individuais para dentro do cenário climático, criando um discurso demasiado alarmista e com algum gozo masoquista e vitimista.

De qualquer modo, cada indivíduo e, mais importante, cada grupo perceciona, lê e cria narrativas que fundamentam as suas práticas com base em informações e afetos conscientes e inconscientes. E a capacidade individual e coletiva de suportar a dor psíquica é condição fundamental para a construção de discursos mais próximos da realidade que poderão servir de base fiável para a atuação na realidade concreta.

(Obs: não entrarei aqui na questão de alguns grupos ideológicos deliberadamente financiarem a desinformação climática.)

A tolerância à dor e os diversos modos de integrar e digerir a dor, bem como os amplos sentimentos de desamparo e impotência diante da destruição causada, são aspetos centrais para compreendermos a real magnitude do problema e criarmos uma trama simbólica e afetiva partilhada e endereçar o problema.

Infelizmente, quanto maior a dor associada, maior o sentimento de desamparo, maior é a sensação de impotência e maior é a aderência aos discursos mágicos e sem adesão aos fatos. Entre os discursos mágicos, parece-me que o mais temoroso é uma crença excessiva no potencial redentor da ciência/tecnologia, especialmente no atual paradigma socioeconómico. Apesar de existirem outros discursos alienados como, por exemplo, um darwinismo raso que desidrata de afeto a destruição que causamos e relativiza a possibilidade de extinção da nossa espécie como se isto fosse algo sem importância.

Mas o oposto do que foi dito acima também é verdade, quanto mais amparados e potentes nos sentimos, mais aceitamos a realidade em sua complexidade e dificuldades, uma vez que nos consideramos aptos para transformá-la.

Entramos agora no cerne da questão, para evitarmos que os indivíduos utilizem mecanismos regredidos e fantasiosos ao lidarem com as questões climáticas, é importante que sejam criados espaços para colocar em comum/comunicar os afetos. Redes de suporte compreensivas e capazes de oferecer apoio, escuta e formar pensamentos adequados que depois poderão gerar mobilizações efetivas na prática.

Discordo, portanto, da expressão popular que aconselha não chorarmos sobre o leite derramado. Chorar e viver na integralidade a dor da perda gera o primeiro nivelamento afetivo para sucessivamente criarmos discursos amparados na realidade científica e não derramarmos mais e mais leite à medida que caminhamos às cegas.  

Enveredar pela depressão necessária de percebermos a destruição que causamos, viver esta dor e progressivamente pensarmos em alternativas práticas não é uma tarefa que podemos realizar sós. Especialmente diante da magnitude do problema. 

Apenas em vínculos afetivos, compreensivos e dialógicos é possível gradualmente desbloquear o potencial humano, potencial que transcende a soma dos indivíduos e encontra-se na articulação afetiva e inteligente dos seres que reconhecem a totalidade da realidade. Realidade desagradável e dolorosa, mas também realidade passível de ser transformada pela vontade acrescida da inteligência. Processo pelo qual a criação de discursos adequados pode fundamentar e organizar a potência humana para atuarmos sobre o leite derramado.

Felizmente, não precisamos começar do zero a nossa caminhada. No último século, amplo conhecimento foi sistematizado em áreas como psicologia, psicanálise, antropologia, sociologia, entre outras áreas. Conhecimento sobre as fases do luto, sobre as diversas formas de lidar com o sofrimento e, finalmente, sobre a importância dos vínculos afetivos e sociais neste processo.

Além do mais, dispomos de muitos profissionais devidamente qualificados e em número suficiente para dar resposta ao problema, desde que, gradualmente, o binómio psiquismo-ecologia se torne uma prioridade e não apenas um simpático adereço.

É fato que ainda é necessário uma fase de ajuste e adaptação, mas os insumos básicos já se encontram entre nós. Falta apenas que os recursos (dinheiro, tempo e atenção/dedicação) possam ser deslocados para o cuidado (psíquico e ambiental) para, assim, aos poucos, retificarmos a potência humana.

Potência que, atualmente, com objetivo de evitar o sofrimento, afirma a ignorância (não saber) e gera destruição, produzindo, ao fim, mais dor.

Diante da ineficácia do modelo atual em lidar com o sofrimento, outro modelo se faz necessário. A experiência acumulada no último século não deixa dúvidas de que o paradigma do diálogo, dos vínculos afetivos e do amor ao conhecimento – mesmo que doloroso, é a única forma capaz de colocar a potência humana ao serviço da vida.

Matthias Ammann, 25.10.2020

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